ACADEMIA

quarta-feira, 21 de junho de 2017

De Afogados da Ingazeira sai o rei do duplo sentido


A vida do cantor, compositor e sanfoneiro José Nilton Veras, pernambucano de Afogados de Ingazeiras, mas criado em Salgueiro, daria um livro ao mesmo tempo romântico e picaresco. Com 20 anos, ele saiu do sertão, andou pelo mundo, até que, 60 anos depois, voltou para sua cidade. Feito o personagem da novela Candide, (de Voltaire Publicado em 1959) descobriu que não há nada melhor do que cultivar o seu jardim. O jardim de José Nilton, mais conhecido pelo nome artístico de Zenilton fica no sopé da Serra do Cruzeiro, em Salgueiro, Sertão Central de Pernambuco, a 518 km do Recife: "Comprei uma casa num pé de serra. Tem dia que o clima tá em 18, 19 graus, enquanto na cidade é de 30 a 40 graus. Me sinto muito satisfeito. Só o fato de ter voltado pra minha terra é uma felicidade. Muitos nordestinos foram embora e não voltaram. Estou aposentado, de fome não morro mais. Mas não parei. Deu uma artrose numa mão, vou me operar, depois eu volto a fazer show", diz Zenilton.
Embora tenha lançado o primeiro LP em 1960, ele só se tornou sucesso nacional na década de 70, com forrós de duplo sentido, sem preocupações com o cultivo da sutileza. Capim Canela ("Meu gado emagreceu, que só se vê a costela/ a salvação disso tudo foi o capim canela/ a criação engorda comendo capim canela/ é só capim canela, é só capim canela"), A Veia Debaixo da Cama, Bacalhau à Portuguesa (Eu quero cheirar seu bacalhau/ Maria, quero cheirar seu bacalhau"), Deixei de Fumar ("Só fumo no cachimbo da mulher/ fumar cigarro nunca mais eu me acostumo/ todo dia fumo no cachimbo da mulher"). Zenilton revela que foi levado ao duplo sentido por causa de Luiz Gonzaga:
"Fui fazer um show numa fazenda, a Rancho Alegre, na Bahia. Eu, Marinês, Luiz Gonzaga, Trio Nordestino. Era uma vaquejada. Na minha apresentação, comecei às nove horas e era pra parar dez e meia, mas meti o pau, só cantando Gonzaga. Quando terminei, ele estava lá no fundo do palco esperando, e veio e me perguntar: ‘E agora, eu vou cantar o quê? Você cantou tudo o que ia cantar. Você se defina, e esqueça o que é meu, você estragou meu show’. Zenilton diz que o carão do Rei do Baião o deixou meio chateado. Em São Paulo, conversando com Raul Seixas, de quem era amigo, contou o episódio a ele: "Raul me disse, inventa outras coisas. Canta coisas engraçadas. Aí gravei Capim Canela. No outro ano, fui fazer um show na mesma fazenda, Luiz Gonzaga me viu e veio me abraçar dizendo: ‘Está vendo como foi bom eu lhe avisar? Fui pro Rio de Janeiro, todas as rádios só tocam você’".
PAU DE ARARA
Zenilton começou a tocar na adolescência em Salgueiro, nos forrós nos sítios da região. Aprendeu sanfona sozinho, no começo dos anos 50, ouvindo as músicas de Luiz Gonzaga: "Meu pai era dentista do Exército e gostava de fazer rolos. Uma vez foi pro Recife e fez um rolo numa sanfona de oito baixos. Ele viajava muito, e quando voltou eu tinha aprendido a tocar. Ele não queria saber de filho tocador, por ele eu precisava era estudar". Foi então que Zenilton decidiu cair no mundo: "Passou um caminhão Alfa Romeu por Salgueiro, em 1958, ia pra São Paulo. Viajei nele. Gastei 18 dias na viagem, cheguei em São Paulo com a bunda torta. Não conhecia ninguém na cidade. Só tinha uma sanfoninha e uma sacola com roupa. Veio a ideia de arrumar dois caras, um pra zabumba, e outro triângulo. Fui pra Praça da Sé. Levava um balaio, enchia o balaio inteiro, três vezes por semana.
Um dia Zenilton tocava na Praça da Sé e apareceu um português que queria aprender a tocar sanfona. Fizeram um acordo, Zenilton e o português, que era dono de bar. O sanfoneiro dormiria num quartinho nos fundos do bar, trabalharia durante o dia para o português e lhe ensinaria sanfona: "Ele foi embora pra Portugal, eu comprei o bar. E fui comprando outros. Cheguei a ter 14 bares pequenos, tipo lanchonete. Daí fui conhecendo os músicos, o povo do rádio começou a me convidar e acabei abraçando a carreira", resume o forrozeiro seus primeiros anos no "Sul".
Passada a onda do duplo sentido, do qual Zenilton se tornou um dos mais bem-sucedidos praticantes, com Genival Lacerda, ele andou por uns tempos sumido da mídia, até reaparecer graças ao Raimundos, grupo de rock brasiliense dos anos 90, cujos integrantes se diziam influenciados pelo pernambucano: "Eu morava em São Paulo, eles foram me procurar na gravadora, a Copacabana, deixaram o telefone. A gente gravou juntos, fizemos shows, mas depois que começaram a ganhar dinheiro, então se esqueceram de mim. Os shows eram tudo torto, entronchado, eles cantavam desafinados. Mas isso é o de menos, não tem aí um tal de Safadão, que canta tudo errado? Mas o povo gosta disto", diz Zenilton.
Ele não nutre também a menor simpatia pelas bandas que dizem fazer forró: "Do forró eu participei de tudo, cantei com Luiz Gonzaga em circo, em 1959, adoro forró. Mas este negócio de forró, o pessoal inventa muita conversa. O forró não é música. Tá no dicionário, vem de forrobodó, está no dicionário, comes e bebes é festa. A música continua sendo o baião, xote, a toada. Apareceram estas bandas da vida e vieram com esta história de forró. Quando eu era rapazinho, a sociedade fazia uma festa, era um baile. Quando era feito nas vilas, nos sítios, era risca-faca, o forró. Costumo dizer que cada um faz o que sabe. Não dou valor ao que as bandas fazem, mas o povo dá. Elas não têm uma música que preste. É tudo igual, uma voz só, uma coisa só. Banda é iluminação, só o palco é um show. Eles não me convidam pra tocar com eles não, que não são doidos. Porque sabem que se botar o velhinho no palco, acabo com eles".
PROTESTO
Da tranquilidade do seu pé de serra, Zenilton observa as transformações do mundo. Tem interesse na internet, para ele um bem e um mau moderno: "Não se vê mais uma livraria, uma loja de discos porque ninguém compra mais. Tudo o que você quiser de livro e disco está na internet. Ela estragou totalmente a cultura. Eu gravei um disco agora, tá todo na internet, de graça, vá lá e pegue". Refere-se a Os Ladrões da Petrobras, gravada em Salgueiro, com produção do primo Fabiano Veras. O duplo sentido deu lugar ao protesto: "Estou com uma música estourada aí em todo o Brasil, a da Petrobras, com cem mil visualizações na internet. O assunto no momento é esse, o povo não aguenta mais sofrer. Tem outra em que eu falo do negócio da carestia, tá tudo caro, ninguém aguenta mais".
A sensação de esculhambação do país de Zenilton acentua-se no forrozeiro porque ele passou muitos anos em Portugal, onde também teve influência em Quim Barreiros, artista muito popular no país, na linha duplo sentido. Barreiros fez grande sucesso com Bacalhau à Portuguesa, a mesma cantada por Zenilton, ou Chupa Teresa ("Chupa Teresa, chupa Teresa/ que este gelado gostoso/ é feito de framboesa"). A ausência de Zenilton do Brasil suscitou rumores de que tivesse morrido, até porque ele não fez o mesmo sucesso em terras lusas. Há pouco mais de dois anos, voltou para o Brasil, passou por São Paulo e resolveu retornar ao Sertão. Tem três filhos, bem encaminhados (uma filha é médica). Só lamenta não poder tocar sanfona. Mas depois que resolver o problema da artrose, volta ao instrumento e aos palcos, afinal só tem 79 anos e quatro meses. Inteira os 80 em fevereiro de 2018.

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