ACADEMIA

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Feijão e arroz que viram poesia em São José do Egito


Antes de o almoço ser servido, Antônio Marinho adverte: “Peguem seus pratos, e não esqueçam, além de feijão e arroz, vocês estão comendo poesia!”. Todos os anos, desde que o povo resolveu comemorar o aniversário do poeta além de sua morte, o neto de Louro do Pajeú que carrega o nome do bisavô materno na carteira de identidade lembra: o baião-de-dois era a ração preferencial das rodas de boemia e poesia de Louro.
“Era baião no terraço e baião também na cozinha”, confirma Marilena Marinho, a filha mais velha de Louro e Helena. “Tinha que ter algo sempre farto, barato, gostoso, que desse para alimentar quem chegasse”, diz. Prato típico de culturas de aproveitamento integral de alimentos, o baião-de-dois, segundo o folclorista Luís da Câmara Cascudo, autor do referencial História da Alimentação no Brasil, teria se disseminado, nos anos 1940, do Ceará para o resto do Nordeste. No Estado, onde está em processo de tombamento cultural, a receita de feijão cozido com arroz misturados tem dezenas de variações. Uma das mais populares é a acrescida de carne desidratada em algum nível – charque ou de sol.
Na casa de Louro, o prato parecia confirmar, na realidade, uma famosa frase de um sociólogo norte-americano especializado nas dinâmicas da alimentação e que também se deteve sobre as dicotomias sociais geradas pela cana-de-açúcar no mundo. Dizia Sidney Mintz: “O comportamento relativo à comida revela repetidamente a cultura em que cada um está inserido”. “E o interessante é que o baião estava de fato na cozinha, e também lá fora. Era um trocadilho”, reforça o neto Antônio Marinho.
“Baião-de-dois é um estilo de cantoria”, explica Miguel, seu irmão mais novo. “Eu não lembro de ter sentado uma só vez naquela mesa dos meus avós só com gente da família, havia sempre alguém de fora, a casa estava sempre aberta”, lembra o neto mais velho, sobre o sistema de franca hospitalidade daquele lar.
Com o afeto para quem chegasse maior que as panelas, dona Helena Marinho buscava uma forma de alimentar os muitos convidados de Louro, que chegavam sem qualquer aviso prévio. “Aí, Mãe Nena começou a fazer o baião-de-dois. Ela botava feijão, arroz, bucho, tripa, charque, tudo que se coloca numa feijoada”, diz Marinho.
HERANÇA
Desde a morte da mãe, quem assume a tarefa de preparar o baião de Louro é a filha Maria Helena. “Coloco menos ingredientes, para ficar com gosto de baião mesmo, e não de feijoada”, diz ela que, apenas com a ajuda de Mazé, secretária há anos na lida da casa, chega a preparar até 40 quilos dessa dobradinha de feijão com arroz para ser distribuído a cada almoço do dia 6 de Janeiro. Para comer, basta estar lá. Como antes, sem aviso prévio.
Cebola refogada, feijão cozido, arroz misturado, charque e outros cortes para dar gosto, algum tempero, panelas carregadas e, ali na rua em que o pai morou, Marilena atende os fãs de Louro do Pajeú de talher e cumbuquinha na mão, enfileirados como versos. Mais que feijão, arroz e poesia misturados, os ingredientes parecem confirmar uma máxima de outro Pernambuco notório. Numa grande receita de família, dizia Gilberto Freyre, há mais que comida. Há, sobretudo, uma maneira de ir vencendo o tempo. Pelo menos, em São José do Egito.

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