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domingo, 30 de junho de 2024

Cachês milionários em ano eleitoral: a farra dos shows de prefeituras

 


Uol

Os gastos foram os maiores dos últimos dez anos, segundo dados disponíveis no painel do Portal Nacional de Contratações Públicas. Gusttavo Lima, Wesley Safadão, Ana Castela, Nattan e Zé Neto & Cristiano, os artistas brasileiros com os maiores cachês, receberam juntos R$ 76,8 milhões em dinheiro público municipal por 106 shows. A verba supera a destinada pela Lei Rouanet a projetos musicais no período (R$ 61,7 milhões).

A Balada Eventos, empresa de Gusttavo Lima, afirmou que “cabe aos Tribunais de Contas a tarefa de fiscalizar as contas públicas”. Edson Lucas, assessor jurídico da Prefeitura de Baturité, afirmou à reportagem que foi “uma situação irrelevante, que não trouxe benefício nem malefício para ninguém”.

Mari Fernandez não quis comentar o caso. Ana Castela e Wesley Safadão argumentam que o valor que cobram das prefeituras paga equipe e logística. A assessoria de Zé Neto e Cristiano afirmou que a dupla não diferencia o cachê por se tratar de prefeitura. “A valoração segue a mesma para todos os contratantes”. O Uol também procurou Nattan e a Prefeitura de Petrolina, mas não obteve retorno.

Eventos cada vez mais caros ficam à mercê do uso político, especialmente em ano eleitoral, apontam promotores dos ministérios públicos estaduais, que questionaram 24 eventos musicais de prefeituras esse ano.

Para Antonio de Souza Júnior, do MP-CE, o show com Mari Fernandez em Baturité, por exemplo, foi um episódio de “clara promoção pessoal” e “abuso de poder político”. Este tipo de conduta ilícita é responsabilidade do prefeito, não dos artistas, ele esclarece.

Em Santa Rita (PB), um dos shows questionados, o valor do São João da cidade ficou 62% mais caro que o de 2023 (R$ 8,5 milhões). O MP-PB pediu para a cidade cortar R$ 5,3 milhões da verba.

A Prefeitura afirmou que “a decisão de ampliar os gastos com os festejos juninos está dentro do poder” do prefeito, e a Justiça autorizou a festa de R$ 13,8 milhões. Bell Marques, que cantou no São João de Santa Rita por R$ 500 mil, puxou uma conversa com o prefeito, Emerson Panta (PP), no meio do show. “Vocês aqui de Santa Rita merecem muita coisa. A primeira é ter um prefeito como o Emerson”, disse.

O Uol procurou a Prefeitura de Santa Rita e Bell Marques para comentar, mas não obteve resposta.

Depois das críticas, a conta subiu

A falta de transparência desses gastos virou assunto a partir de 2022. Na época, o sertanejo Zé Neto, parceiro de Cristiano, causou furor ao criticar Anitta e a Lei Rouanet durante um show em Sorriso (MT). “Não dependemos da Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo.”

O show da dupla foi bancado pela Prefeitura e custou R$ 400 mil. A polêmica levou à descoberta de cachês mais polpudos, pagos por prefeituras que, por vezes, desviaram verbas de outras áreas para financiar a apresentação. Shows municipais, em geral, só dependem da assinatura de prefeitos. Eles podem, por lei, contratar artistas sem licitação.

Enquanto os gastos da Lei Rouanet são divulgados em um painel público, o Versalic, não há sistema para acompanhar os custos de shows municipais. Cada cidade e cada Tribunal de Contas divulgam essas informações de um jeito diferente. De 2022 para cá, Ministérios Públicos estaduais e governo federal começaram a dar a dimensão desses gastos.

Segundo o recém-lançado painel do Portal Nacional de Contratações Públicas, que mostra contratos federais, estaduais e municipais, Zé Neto & Cristiano voltaram a Sorriso em 2024. O cachê deles quase dobrou em dois anos: foi de R$ 400 mil para R$ 750 mil.

O Uol procurou a Prefeitura de Sorriso para comentar, mas não obteve resposta.

São João dos milhões

A principal iniciativa de acompanhar os custos vem da Bahia. Desde 2023, o Painel de Transparência Junina do estado reúne gastos juninos informados pelas cidades. A média por município subiu de R$ 705 mil para mais de R$ 1 milhão, de um ano para outro.

O Uol obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), os valores das cinco maiores festas de São João da Bahia desde 2013. Os números indicam que os gastos subiram após a pandemia e tiveram novo salto em 2024.

Os criadores do painel ressaltam as importâncias cultural e econômica das festas, desde que não haja abuso político ou comprometimento do orçamento. Os eventos oferecem entrada gratuita para um público que muitas vezes não tem dinheiro para ingressos. Parte da população até fatura.

“Pessoas alugam suas casas, economizam dinheiro para comprar cerveja e vender lá. Temos que ter cautela para tratar dessas festas”, diz Rita Tourinho, promotora do MP-BA.

Emmanuel Girão, procurador do MP-CE, explica os possíveis abusos. Prefeito subir ao palco para falar “não tem problema”. “O que a lei não permite é que se exaltem qualidades pessoais e plataformas de governo”, diz Girão.

Em um evento pago pela Prefeitura, essa exaltação pode configurar abuso de poder político, uso do cargo para ter apoio eleitoral. Nesse caso, o candidato pode ser cassado e ficar inelegível por oito anos. Mas as ações judiciais só podem acontecer a partir de agosto, quando as candidaturas forem registradas.

‘Desenvoltura para os eventos’

No Carnaval de Maceió, Xand Avião, com cachê de R$ 450 mil, também puxou o coro de “Já ganhou!” para o prefeito João Henrique Caldas. Enquanto o público respondia ao coro, JHC cumprimentava e abraçava Xand.

Com o pré-candidato à reeleição no palco, Xand o chamou de “gato, bonito, desenrolado, trabalhador”. “Esse homem tem que ser presidente, não é prefeito, não”. Questionado pela reportagem, o cantor não quis comentar.

Em nota, a Prefeitura disse que “as festividades geram trabalho e renda extra para mais de 50 atividades econômicas, beneficiando cooperativas, empreendedores individuais, pequenos negócios e o setor de serviços”.

‘Showmício’ para quem está no poder

A lei brasileira proíbe desde 2006 a realização de “showmícios”, apresentações musicais com objetivo de promover candidatos – seja com dinheiro público ou privado.

“Na prática eles ainda acontecem, mas só para quem tem a máquina pública na mão”, analisa Daniel Neves, presidente da Associação Nacional da Indústria da Música.

Dani Ribas, especialista em gestão cultural, se preocupa com a falta de outros incentivos culturais nestes municípios. “A Constituição dá autonomia a gastos dos municípios, e tem que ser assim em um país do tamanho do Brasil. Não podemos demonizar. O problema são os abusos”.

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